É comum ouvir dizer que o Brasil é privilegiado por estar livre de desastres naturais. Mas, muito antes da ocorrência de furacões e ciclones extratropicais nos estados do Sul, o país já vive o inferno da seca no Nordeste. Desde o tempo do Império, discute-se a possibilidade da transposição das águas do Rio São Francisco para o chamado Polígono da Seca como forma de solucionar o problema. De lá para cá, outros projetos se sucederam, mas nunca foram implementados. Contudo, agora, parece que esse objetivo está sendo levado a sério, e o governo federal se mobiliza para iniciar o que seria, juntamente com a Itaipu e a Transamazônica, uma das maiores obras de engenharia de que nosso país já teve notícia. As obras de transposição do rio São Francisco encontram-se concluídas em seu eixo leste – inaugurado em 2017 pelo presidente Michel Temer – e em fase de conclusão no eixo norte, que deve ser entregue ainda no ano de 2019.
O Polígono da Seca é uma área de 950 mil km2 situada entre o Sudeste e o Nordeste do Brasil e afeta os estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe. A região, de clima semiárido, recebe menos de 700 mm de chuva por ano e é castigada com altas temperaturas: 28°C, em média.
Uma possível solução para o problema seria a chamada transposição do Rio São Francisco. Consiste em estender a circulação do Velho Chico (cujo leito está, maior parte, em Minas Gerais, Pernambuco e Bahia) também para os estados do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Ceará – uma grande região que engloba 1/3 do semiárido nordestino e 80% do território desses estados – e tem como objetivo abastecer 08 milhões de pessoas, 268 cidades e irrigar 300 mil hectares de terras.
A mais recente versão dessa ideia é o projeto de Interligação da Bacia do São Francisco com as Bacias do Nordeste Setentrional, que integra o
Programa de Desenvolvimento Sustentável do Semiárido e da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, comandado pelo Ministério da Integração Nacional. Orçado inicialmente em R$ 9,11 bilhões (a preços corrigidos pela inflação) – atualmente, já ultrapassa a casa dos R$ 11,7 bilhões -, o projeto previa a construção de aproximadamente 722 km de canais e reservatórios, divididos em dois eixos, que abasteceriam o Polígono, aliviando os efeitos da estiagem. Conforme mencionado, o eixo leste encontra-se concluído e o eixo norte deve ser concluído ainda em 2019. Até o final de 2018, haviam sido construídos 477 km de canais. Nos locais mais elevados, que atingem cerca de 300 metros de altitude, os canais precisarão transpor 12 túneis e a água será empurrada por meio de bombeamento.
Mas a transposição está longe de ser unanimidade. Se, para o governo, a obra é inadiável, também não faltam opiniões contrárias.

Defesa
O governo federal e os quatro estados beneficiados pela transposição alegam que a quantidade de água que estará disponível por habitante em regiões do semiárido, daqui a 20 anos, é menos da metade do que o mínimo estabelecido como aceitável pela ONU (1,5 mil litros por pessoa/ano). Com a transposição, ocorreria redução na desigualdade no acesso aos recursos hídricos na região.
Críticas
As sociedades nordestina e mineira se dividem da seguinte forma: de um lado, estão aqueles que argumentam que a transposição das águas seria a salvação para as populações que vivem na região do Sertão Nordestino; do outro, ambientalistas e técnicos que advertem que a transposição será um verdadeiro “tiro no pé”, pois o Velho Chico (há muito tempo castigado por causa do uso indiscriminado de suas águas e pelo crescente desmatamento de suas matas ciliares, o que gera assoreamento) não suportaria ceder parte do volume de suas águas.
Outros dois pontos devem ser ressaltados; um diz respeito ao consumo de energia para recalcar o volume de água pretendido. De acordo com os dados do projeto, a energia necessária para esse fim é equivalente àquela gerada em Sobradinho (1050 MW), ou seja, precisa-se ter uma Sobradinho inteira, funcionando 24 horas por dia, para manter o sistema operando satisfatoriamente, numa região em que existem problemas de geração de energia elétrica desde o ano de 2000.
O outro, e talvez o mais importante, diz respeito à garantia de vazão do rio que assegure a geração de energia elétrica e a irrigação em suas áreas potenciais. O São Francisco é um rio que, no Nordeste semiárido, corre inteiramente sobre o embasamento cristalino e, em decorrência disso, todos os seus afluentes têm regime temporário. Este aspecto traz como consequência uma diminuição gradativa de sua vazão ao longo do ano, dada a diminuição e até a interrupção das vazões dos afluentes que fazem parte de sua bacia, agravada, ainda, pelo uso das águas na irrigação (águas utilizadas que não têm retorno ao rio). A quantidade de água desviada seria de 63 m3/s, ou seja, cerca de 3,4% da vazão total no baixo São Francisco. Boa parte desse volume serviria a projetos de agricultura irrigada (principalmente para a produção de frutas para a exportação) e a produção de camarão em açudes. Outra parte seria utilizada para abastecer centros urbanos que hoje consomem boa parte da água disponível na região. No entanto, segundo prevê o projeto, esse volume poderá atingir 127 m3/s quando o rio estiver mais caudaloso, na estação chuvosa.
Entre as alternativas apontadas para a transposição, estão o melhor gerenciamento e o uso sustentável dos recursos hídricos do semiárido, o investimento em obras não acabadas e uma revitalização do rio – reflorestamento das margens (pois 95% da vegetação nativa que cobria a beira do rio já não existe mais), de modo a evitar a erosão/assoreamento que ocasionam problemas para a navegação e para o equilíbrio ambiental.