Poetas: Ferreira Gullar

Ferreira Gullar (1930-2016)

Ferreira Gullar – poeta maranhense cujo nome verdadeiro era José Ribamar Ferreira – foi um dos poetas mais significativos da literatura brasileira do século XX.

A característica mais importante da poesia de Gullar, aquilo que sempre se destacou em sua obra, foi o engajamento político de seus poemas. Gullar transformou versos em balas de canhão, poesia em instrumento para fazer denúncia social. E denúncia em vários sentidos. Gullar denunciou a desigualdade social, criticou o fato de que muitas poesias não tinham espaço para a política e se opôs fortemente, com sua literatura, à ditadura militar.

Militante do Partido Comunista Brasileiro, forte opositor da ditadura e homem completamente engajado, Gullar foi um poeta afetado pela história. Ele sentia as dores dos problemas sociais e abordava essa realidade em sua poesia.

A carreira do autor começou nos anos 50. Gullar já entrava no mundo da literatura explodindo com a sintaxe e com as regras da língua. Seu primeiro livro, chamado A Luta Corporal, foi publicado em 1953. Original, ele antecipou o movimento concretista, usando o espaço da folha com liberdade, criando sons que não existiam, revolucionando e brincando com a linguagem. Enfim, decidiu não se dobrar às regras da língua.

Nos anos 60, entretanto, é que ele começa a olhar um outro Brasil, o Brasil da fome, da desigualdade, da má distribuição de terras e, mais tarde, da repressão e da ditadura.

Exilado por causa do regime militar, Ferreira Gullar escreveu, na Argentina, seu livro mais famoso. Escrito em 1975 e publicado no ano seguinte, surge Poema Sujo, produzido quando o poeta temia pela sua própria vida e, como ele mesmo disse em uma entrevista, seu pensamento foi: “enquanto é tempo, eu vou dizer o que me resta dizer”.

Poema Sujo é um poema protesto, testemunho de uma situação política e social de violação de direitos humanos, de torturas, de censuras, e de, enfim, inexistência de democracia. Poema Sujo é uma excelente análise da política brasileira da época em versos. O livro é escrito num jorro descontrolado de prosa, sem pontuação, que mostra toda a raiva e a angústia de um escritor sensível às injustiças.

Trecho de Poema Sujo:

Ah, minha cidade suja
de muita dor em voz baixa
de vergonhas que a família abafa
em suas gavetas mais fundas
de vestidos desbotados
de camisas mal cerzidas
de tanta gente humilhada
comendo pouco
mas ainda assim bordando de flores
suas toalhas de mesa
suas toalhas de centro
de mesa com jarros
– na tarde
durante a tarde
durante a vida –
cheios de flores
de papel crepom
já empoeiradas.

(GULLAR, Ferreira. Poema Sujo. São Paulo: Companhia das Letras, 2016)

Pausa para um Poema?

Não há vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
– porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira.

GULLAR, Ferreira. Não há vagas. Disponível em: http://portal.mpc.rs.gov.br/portal/page/portal/noticias_internet/textos_diversos_pente_fino/naohavagas.pdf Data de acesso: 15/03/2019

Esse poema aborda, pelo menos, duas questões. O fato de que existem pessoas que ganham um salário indigno e que isso é permitido por nossa estrutura social; e, em segundo lugar, critica poemas que “não fedem nem cheiram”, poemas que não se posicionam, que não levam em conta as contradições sociais.

Estabelecendo Relações

Levando em conta a possibilidade de se fazer crítica social com poesia e pensando no poeta como alguém que se importa com o social, leia, abaixo, a letra da música Cartão de Visita, do cantor Criolo, e pense sobre o teor social dessa letra. Como essa canção poderia ser, a exemplo da obra de Ferreira Gullar, pensada como canção-protesto? Quais são os temas levantados?

Cartão de Visita

Acende o incenso de mirra francesa
Algodão fio 600, toalha de mesa
Elegância no trato é o bolo da cereja
Guardanapos gold agradável surpresa
Pra se sentir bem com seus convidados
Carros importados garantindo translados
Blindados, seguranças fardados
De terno Armani, Loubotin sapatos
Temos de galão Dom Pérignon
Veuve Clicquot pra lavar suas mãos

E pra seu cachorro de estimação
Garantimos um potinho com pouco de Chandon
Mc Lon ta portando o vip
Tássia tem um blog de fina estirpe
Pra dar um clima cool te ofereço de brinde
Imãs de geladeira com Sartre e Nietzsche
Glitter, glamour, la maison criolê
O sistema exige perfil de tv
Desculpa se não me apresentei a você
Esse é meu cartão, trabalho no buffet

Acha que tá na mão, tá bom, tá uma festa
Menino no farol cê humilha e detesta
Acha que tá bom, né não, nem te afeta
Parcela no cartão essa gente indigesta
(Nem tudo que brilha é relíquia, nem jóia)

Governo estimula e o consumo acontece
Mamãe de todo mal a ignorância só cresce
FGV me ajude nessa prece
O salário mínimo com base no DIEESE
Em frente a shoppins, marcar rolêzins,
Debater sobre cotas, copas e afins
O opressor é omisso e o sistema é cupim

E se eu não existo, por que cobras de mim?
O mamão papaia é cassis
Rum com sorvete de bis
Patrício gosta e quem não quer ser feliz?
Pra garantir o patê dão até o edi
Era tudo mentira, sonhei pra valer
Com você, eu ali, nós dois, CVT
A alma flutua à leite, a criança quer beber
Lázaro, alguém nos ajude a entender.

Deixar assim no final: Criolo e Tulipa Raiz. Cartão de Visita. Disponível em: https://www.letras.mus.br/criolo/cartao-de-visita/ Data de acesso: 15/03/2019

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