Passagens Para a Modernidade

Talvez uma das maiores rupturas estabelecidas nos períodos recentes da humanidade seja a ruptura estabelecida entre Idade Média e Idade Moderna. Uma ruptura gradual e que, mesmo assim, deixou marcas na sociedade moderna sentidas até hoje. Se pudermos pensar em categorias de pensamento, ou o que podemos chamar de mentalidades, a maior transição realizada de um período ao outro foi da Escolástica para o Humanismo. A Escolástica foi uma filosofia teocentrista (focada em uma divindade) com principal atenção ao seu filósofo mais famoso, São Tomás de Aquino. O Humanismo, por sua vez, foi uma filosofia focada justamente no homem. A mudança pode parecer pequena se olharmos com o olhar daquele que sobrevoa uma paisagem, mas, se descermos do avião e olharmos mais de perto, poderemos ver que, ao retirar da imagem de Deus a importância e a responsabilidade sobre todas (ou quase todas) as ações, os humanistas trouxeram à Europa uma nova ideia: o homem é o centro do universo.

Essa teoria antropocentrista – que colocava o ser humano no centro de tudo – foi difundida pelo Humanismo. Como definiu o historiador Nicolau Sevcenko, o Humanismo “voltava-se para o aqui e o agora, para o mundo concreto dos seres humanos em luta entre si e com a natureza, a fim de terem um controle maior sobre o seu próprio destino”. É claro que, ao mesmo tempo em que os humanistas se voltavam para a humanidade como centro do mundo, eles ainda eram formados pelos escolásticos, ou seja, ainda tinham uma percepção de mundo cristã, ou seja, religiosa. Desta forma, se dividiam entre a influência da Igreja sobre o pensamento e a nova “moda intelectual”, que era focada no homem.

Porém, não foi só no campo da filosofia que a Modernidade foi marcada por rupturas; no campo das Artes, por exemplo, isso aconteceu com muita força. Em primeiro lugar, é importante notar a forma como nós conhecemos os períodos históricos. Atualmente, definimos tudo o que ocorreu antes da queda do Império Romano como “Antiguidade”, depois dizemos que aconteceu uma Idade Média, para, posteriormente, dizermos que existiu uma Modernidade, até chegar na Idade Contemporânea.

Mas será que as pessoas que viveram na Idade Média, por exemplo, chamavam esse período assim?

Não. O termo “Idade Média” surgiu bem depois da Idade Média acabar. Ele foi aplicado pelas pessoas que viviam no que chamamos de Idade Moderna. Mas por quê?

Na Idade Moderna, passou-se a considerar que tudo o que havia acontecido na medievalidade era ruim, era errado, ou seja, esse período era visto com maus olhos pela sociedade moderna, o período também era conhecido como “idade das trevas”. Por isso, a principal marca da ruptura entre Idade Média e Idade Moderna é a negação das produções culturais e intelectuais da era medieval. Você já pensou sobre como isso foi feito?

Assim como nós precisamos nos basear em figuras que consideramos importantes para a nossa própria construção de identidade – e, geralmente, fazemos isso pensando em artistas, cantores, bandas, times de futebol, personalidades famosas em geral -, os membros das sociedades europeias do período moderno também queriam, talvez até inconscientemente, formar uma identidade cultural baseada em seus principais ídolos. Contudo, como eles condenavam a produção cultural da Idade Média, resolveram buscar essas figuras na Antiguidade, no caso, na Grécia e na Roma antigas. Um das acusações desse movimento é a de que a Igreja tinha “matado” a produção cultural e intelectual da antiguidade para impor uma nova forma de pensar, a forma cristã. Em contrapartida, para os que viviam neste período, essa era uma forma de resgatar o pensamento antigo, ou seja, uma maneira de “ressuscitar” o pensamento que morreu na Idade Média. Mais do que isso, diziam que fariam a cultura “Renascer”. Esse movimento cultural foi chamado de Renascimento.

Ser Moderno é Pensar!

Mas não foi só na cultura que houve um Renascimento. No mundo filosófico e científico, muitas mudanças ocorreram. Com a religiosidade da Idade Média, o corpo humano era um templo inviolável. Isso quer dizer que o estudo do corpo era dificultado pela falta de possibilidade de tocar em corpos já inanimados. Mas, com a quebra de paradigmas que aconteceu na transição – lenta e gradual, é importante lembrar – para a Idade Moderna, algumas técnicas de dissecação passaram a existir. Isso quer dizer que a ideia de que o homem era o centro do mundo repercutiu na ciência, que agora queria viajar por esse espaço até então intocável: o corpo humano. É claro que isso não foi fácil. Na Espanha, por exemplo, Miguel de Servet (1511-1553), um dos primeiros pesquisadores do funcionamento do corpo humano através da dissecação de cadáveres, foi condenado à morte pela Igreja, que ainda realizava perseguições através da Santa Inquisição.

Giordano Bruno (1548-1600) e Galileu Galilei (1564-1642) também foram alvos do Santo Ofício, órgão da Igreja Cristã que era responsável por julgar e condenar hereges, ou seja, pessoas que questionavam as Santas Escrituras. As teorias desse dois cientistas questionavam, de certo modo, o pensamento cristão sobre geografia, astronomia e os estudos da presença do ser humano no universo. Isso lhes custou caro.

Digo isso para que não fique a impressão de que, a partir dos movimentos culturais e científicos renascentistas, houve uma revolução no pensamento ocidental e que a Igreja não tinha mais controle sobre o que se falava, pensava ou fazia na Idade Moderna. Não, a Igreja ainda tinha muita influência e isso se concretizava nas condenações, na repressão e na perseguição a muitos cientistas e adeptos do pensamento humanista. Mas existiram, também, alguns filósofos que, imbuídos do pensamento cristão, promoveram uma transição para outro tipo de pensamento. Eram os Racionalistas.

Talvez o exemplo mais completo seja o de René Descartes (1596- 1650), filósofo que publicou o “Discurso do Método”, sistema que é utilizado ainda hoje para realizar pesquisas científicas. Descartes, assim como outros filósofos de seu tempo, instaurou a primeira fase do racionalismo, ou seja, um tipo de pensamento que tinha por base a razão como principal elemento para se chegar ao conhecimento verdadeiro. Assim, através do racionalismo, Descartes buscava provar a existência de Deus, utilizando a filosofia moderna para explicar elementos que eram o foco da filosofia da Idade Média.

Portanto, ainda na Idade Moderna era possível encontrar elementos do medievo, mesmo com uma nova roupagem, com uma nova ideia e com novas perspectivas de conhecimento. Isso porque nem tudo na História é mudança profunda. Algumas continuidades se apresentam, assim como se apresentam para nós hoje. Mas isso é conversa para mais tarde. Vejamos agora como essas ideias chegaram em outros “mundos”.

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