“A capoeira não vem mais, agora reagimos com a palavra, porque pouca coisa mudou, principalmente para nós. Não somos movimento, não somos os novos, não somos nada, nem pobres, porque pobre segundo os poetas da rua, é quem não tem as coisas.
Cala a boca, negro e pobre aqui não tem vez! Cala a boca!
Cala a boca uma porra, agora a gente fala, agora a gente canta, e na moral agora a gente escreve.
Quem inventou o barato não separou entre literatura boa/feita com caneta de ouro e literatura ruim/escrita com carvão, a regra é só uma, mostrar as caras. Não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto”.
Terrorismo Literário (Ferréz) In: Literatura Marginal: Talentos da Escrita Periférica
Vocês, talvez, já devem estar familiarizados com a palavra marginal usada com o sentido de se referir àquelas pessoas que não estão no centro de uma história, que não se enquadram em um padrão estabelecido, que são minorias ou que são discriminadas de alguma forma. Falar sobre pessoas ou grupos que são marginais significa falar sobre indivíduos não integrados. Não integrados porque não recebem atenção da sociedade, porque não têm direitos iguais ou porque não querem, como ato político, se integrar a um padrão, a chamada contracultura. O movimento hippie, por exemplo, foi um movimento marginal, pois se colocou fora do sujeito estadunidense padrão. Se o homem padrão daquela cultura tinha o rosto liso e barbeado, o hippie teria sua barba grande. Se o homem padrão daquela cultura vestia-se com roupas sociais, o hippie vestiria-se de outra forma. Se o homem padrão daquela cultura optava pelo asamento monogâmico, o hippie optava pelo amor livre. Dessa forma, foi um movimento marginal.
No entanto, também podemos usar a mesma palavra para quem não tem direitos ou para quem não tem oportunidades de ter uma vida digna devido a uma estrutura social injusta.
Na esfera da arte, marginal significa apenas uma qualificação para o trabalho de artistas que são independentes de grandes editoras ou gravadoras, ou que têm um projeto estético que se opõe ao que está sendo feito no momento ou que se colocam fora dos esquemas comerciais de consumo.
Porém, nós precisamos observar o caso de artistas que são postos à margem ou que são esquecidos por uma série de fatores. Dentro dos principais manuais de literatura brasileira, por exemplo, temos apenas duas escritoras mulheres que são consideradas e dois ou três autores negros. No entanto, dentro da história de nossa literatura, temos bem mais escritoras e bem mais autores negros do que o cânone de nossa literatura mostra. Ou seja, temos obras e artistas postos à margem da sociedade. Suas obras não são reconhecidas como arte!
É contra essa invisibilidade que surge, no século XXI, o movimento da literatura marginal. Apesar de os manifestos serem algo mais comum ao século XX, esse manifesto contemporâneo nos mostra como os movimentos criados pelos modernistas europeus e brasileiros para questionar o que era considerado arte foram importantes, abriram e abrem portas até hoje.
E o que é a Literatura Marginal?
A literatura marginal – e aqui não se trata da Geração Mimeógrafo dos anos 80 – é um movimento que tem se intensificado cada vez mais. A característica central dessa literatura, para sermos didáticos, é ser escrita por autores(as) que trazem para seus textos temáticas vivenciadas por eles, que se constituem como indivíduos que estão às margens da sociedade.
Esses autores e autoras trazem em suas obras, por exemplo, a realidade da mulher negra e pobre que sofre de racismo e de violência, trazem a realidade dos jovens que vivem nas periferias em meio ao tráfico, o crime, a truculência da polícia e a invisibilidade social. Trazem, em sua literatura, enfim, suas experiências de vida e encontram muita dificuldade de serem aceitos dentro da literatura nacional e dentro do restrito mercado editorial. Os motivos que levam a essa falta de entrada no centro do que é considerado como literatura nos fazem refletir sobre os preconceitos que pairam em nossa sociedade.
Assim como os modernistas, que tanto em seus manifestos como em suas produções poéticas, eram muito violentos para desconstruir paradigmas e chocar a sociedade, os autores da literatura marginal também se utilizam, em sua escrita, do elemento da raiva, da violência e do choque.
Como podemos observar no início do texto de Ferréz, Terrorismo Literário, temos a violência estética reproduzindo a violência que encontramos na sociedade. “Cala a boca, negro e pobre aqui não tem vez! Cala a boca!“
Podemos observar no trecho, também, a perspectiva de que os marginalizados pela sociedade precisam narrar suas próprias histórias. Observem o trecho: “mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto.”
Ou seja, percebemos uma forte relação entre literatura e sociedade, uma vez que os autores estão usando a arte para retratar problemas que nos afetam como comunidade e retratando-os, denunciando-os, tirando esses problemas da invisibilidade, é que poderemos resolvê-los.
Ferréz, o autor do manifesto, é o nome artístico de Reginaldo Ferreira da Silva. Paulista, nascido em 1975, ele é autor de romances, contos e poesias.
Capão Pecado, de 2001, e Deus foi Almoçar, de 2011, são os seus romances mais potentes.
“Literatura de rua com sentido sim, com um princípio sim, e com um ideal sim, trazer melhoras para o povo que constrói esse país mas não recebe sua parte. O jogo é objetivo, compre, ostente, e tenha minutos de felicidade, seja igual ao melhor, use o que ele usa. Mas nós não precisamos disso, isso traz morte, dor, cadeia, mães sem filhos, lágrimas demais no rio de sangue da periferia”.
FERRÉZ. Terrorismo Literário In: FERRÉZ. Literatura marginal: talentos da escrita periférica. Rio de Janeiro: Agir, 2005
O que observamos no Manifesto da Literatura Marginal é o desejo de construir uma literatura que identifique as desigualdades sociais, é a realidade de trazer para dentro da literatura a linguagem da periferia, diferente da linguagem culta, e, através dessa linguagem, retratar uma realidade marginal. O que observamos no Manifesto da Literatura Marginal é a acusação de que o próprio sistema literário culto e mais acessível às classes médias graduadas não deixa essa literatura entrar. Os autores que estão às margens e buscam espaço e buscam gritar porque não são ouvidos têm o desejo de tentar melhorar a realidade daqueles que estão às margens através da arte.
“Estamos na rua, loco, estamos na favela, no campo, no bar, nos viadutos, e somos marginais mas antes somos literatura, e isso vocês podem negar, podem fechar os olhos, virarem as costas, mas, como já disse, continuaremos aqui, assim como o muro social invisível que divide esse país”.
FERRÉZ. Terrorismo Literário In: FERRÉZ. Literatura marginal: talentos da escrita periférica. Rio de Janeiro: Agir, 2005
Uma Conclusão
Podemos observar, então, que em todos os manifestos artísticos que estudamos temos um posicionamento contra a ordem estabelecida do que é arte, de como se faz arte e de quem pode falar através da arte. Fica claro, nos manifestos, que, ao longo da história da arte e da literatura, temos hierarquia e exclusão e esses manifestos se colocam contra isso, querendo incluir, libertar, desviar-se da rota, enfim, criar. Criação é liberdade, é movimento, é uma eterna caminhada em direção ao porvir.