Não é porque é nosso, não é porque é brasileiro, mas o Manifesto Antropofágico é um dos manifestos mais interessantes dentre as publicações desse gênero do século XX. Para entendermos o ponto de vista desse texto, precisamos, antes, construir algumas reflexões.
Como vocês sabem, em 1922, ocorre a Semana de Arte Moderna. Estrategicamente alocado no aniversário de cem anos da Independência do Brasil, o evento trazia um intrigante questionamento: cem anos depois da independência política do país, nós temos uma independência cultural?
A arte e a literatura brasileiras sempre olharam demasiadamente para um paradigma europeu. Os nossos artistas olhavam para a Europa buscando modelos para imitar. Os escritores do Romantismo, por exemplo, vão imitar os escritores do romantismo europeu. É claro, temos exceções, mas, até os anos 1920, havia uma forte dependência da cultura externa, que era, em suma, a cultura do colonizador. Os agitadores culturais da Semana de Arte Moderna passaram a se questionar sobre a nossa independência cultural e sobre a tendência das elites brasileiras de se europeizar para demonstrar superioridade. Quando os artistas iriam produzir uma arte que fosse tipicamente brasileira? Quando nós iríamos exportar arte ao invés de apenas importar?

Disponível em: https://www.culturagenial.com/abaporu/
Data de acesso: 22/08/2019
Esse questionamento é o ponto de partida do Modernismo Brasileiro e tem muito a ver com o Manifesto Antropofágico. A história desse manifesto começa quando a artista brasileira Tarsila do Amaral produz uma das obras mais famosas da nossa arte, O Abaporu, datada de 1928.
Tarsila, na época, era casada com Oswald de Andrade e deu o quadro, sem nome, de presente para o marido. Impressionado com a figura que Tarsila havia criado, Oswald convocou o poeta Raul Bopp e ambos, consultando um dicionário de Tupi, nomearam o quadro de O Abaporu, que significa homem que come. Importante destacar que a palavra Aba não se referem ao homem europeu, ao homem dito civilizado, e sim ao indígena.
A partir dessa pintura surge um movimento, surge um manifesto, o Manifesto Antropofágico. Tanto o manifesto quanto o movimento que se originou a partir dele referem-se à questão da antropofagia, tradição indígena de comer, literalmente, o inimigo para, segundo a crença que fundamenta esse hábito, assimilar suas qualidades.
Publicado em maio de 1928 na edição de estreia da Revista de Antropofagia, o manifesto traz a ideia de que não sejamos papagaios, repetidores da arte e da cultura dos outros. Oswald propõe uma leitura crítica daquilo que é importado. Para construir uma cultura, uma arte e uma literatura verdadeiramente nacionais, não precisamos negar o alheio, mas, por outro lado, não precisamos copiá-lo. O que o movimento antropofágico propunha era que os artistas importassem aquilo que achassem interessante da cultura alheia, ou seja, que “comessem”, por assim dizer, pratos de outras culturas e que, misturado ao suco gástrico nacional, criassem algo que fosse próprio, que fosse nacional. Como os índios, o que os artistas deveriam fazer era assimilar as qualidades de outrem, sem perder de vista a própria identidade.
A palavra apropriação faz muito sentido dentro da ideia do movimento antropofágico. Quando nos apropriamos de algo, tornamos esse algo nosso, parte de nós, ou seja, há uma mistura entre o interno e o externo, e não uma mera cópia. E toda a criação artística não seria assim? Afinal, não criamos a partir do nada. Sempre criamos a partir de alguma outra coisa. Dessa forma, o povo brasileiro criaria uma arte genuinamente nacional.
Uma brincadeira feita logo no início do Manifesto Antropofágico dá conta dessas ideias: Tupi, or not tupi, that is the question. A frase, bem como o manifesto em si, são uma ironia de Oswald de Andrade à subserviência das elites brasileiras da época à cultura europeia ou ao mundo europeu de forma geral. E é importante lembrar que a arte predominante na época da Semana de Arte Moderna, o Parnasianismo, era feita pelas elites.
Trecho:
“Contra todos os importadores de consciência enlatada. A experiência palpável da vida. Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls”.
ANDRADE, Oswald. Manifesto antropófago e manifesto da poesia pau-brasil. Disponível em: http://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf Acesso em 15 de mar. 2019.