Nessa relação de diálogo entre Cinema e Literatura, há um diálogo dos mais incríveis, que se estende por décadas, entre um conto, um filme e uma peça de teatro.
Tudo começou com uma peça que alcançou fama e polêmica na Broadway em 1934. The Children’s Hour, escrita por Lillian Hellman, se sustenta em um acontecimento real que ocorreu na Escócia no início do Século XIX, quando duas professoras foram falsamente “acusadas” de lesbianismo. A primeira peça da autora causou enorme polêmica, obteve grande sucesso e, ao mesmo tempo, foi alvo de ódio e censura, uma vez que Hellman, ao retratar o antigo caso, estava criticando o preconceito social em relação à sexualidade divergente da heterossexual.
A peça tem como cenário uma escola para meninas regida por duas jovens professoras que se conheceram na faculdade e que sonhavam em abrir sua própria instituição para moças. Karen Wright e Martha Dobie ainda nem chegaram aos trinta anos e vão conhecer toda a fúria moralista e julgadora de uma sociedade retrógrada. O fato é que uma das professoras sempre foi apaixonada pela outra, mas este amor nunca foi declarado. Uma das crianças da escola percebe a situação e delata o suposto caso de amor.
Dois anos depois, em 1936, o diretor William Wyler conclui seu filme These Three, a versão cinematográfica da peça de Hellman com roteiro escrito pela própria autora. Eis um fato interessante: para não causar mais polêmica e censura, o produtor do filme solicitou que o enredo fosse convertido em um triângulo amoroso heteressexual, que incluiria o noivo de uma das duas professoras.

Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/These_Three
Data de acesso: 24/08/2019
No entanto, insatisfeito com isso, Wyler não desistiu. Os anos se passaram e ele se tornou um diretor respeitado, tendo adaptado para o cinema O Morro dos Ventos Uivantes e realizado um dos maiores clássicos do cinema, Ben-Hur.
Em 1961, Wyler é um diretor respeitadíssimo, de grande porte, ganhador de 11 oscars e agora nada pode impedi-lo. Após Ben-Hur, Wyler entrega ao público The Children’s Hour – traduzido para o português como Infâmia –, filme baseado na peça de mesmo nome de Lilian Hellman. Agora, no entanto, o diretor mantém-se fiel à peça e conta a história de duas jovens professores acusadas de não serem heterosexuais. Além do peso do nome do diretor, o filme conta com a presença de duas atrizes já respeitadas no cinema estadunidense, Audrey Hepburn e Shirley MacLaine. O filme, fiel à violência trágica da peça, choca ao expor como preconceitos podem destruir vidas. Uma grande denúncia a homofobia, que merece ser vista e revista.

Disponível em: http://www.cineset.com.br/as-separacoes-de-infamia-de-william-wyler/
Data de acesso: 26/09/2019
Vinte um ano depois, o escritor brasileiro Caio Fernando Abreu lança um de seus mais importantes livros. A coletânea de contos Morangos Mofados obteve imediato sucesso de público e crítica e colocou o escritor, abertamente homossexual, no grupo dos maiores autores da Literatura Brasileira.
Um dos contos dessa obra se chama Aqueles Dois, referência não só ao nome da primeira versão do filme de Wyler, como referência direta à forma como Infâmia foi traduzido na Itália. The Children’s Hour, por aquelas bandas, ganhou o nome de Aquelas Duas.
Aqueles Dois – História de Aparente Mediocridade e Repressão é um dos contos mais representativos da nossa literatura contemporânea. Narra a história de Raul e Saul, dois homens que vêm de regiões diferentes do país para trabalhar em uma empresa cinza, num emprego burocrático, e que acabam se encontrando e se apaixonando.
Morangos Mofados
“Não chegaram a usar palavras como “especial”, “diferente” ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo um pouco burros. Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos. Mas as diferenças entre eles não se limitavam a esse tempo, a essas letras. Raul vinha de um casamento fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de um noivado tão interminável que terminara um dia, e um curso frustrado de Arquitetura. Talvez por isso, desenhava. Só rostos, com enormes olhos sem íris nem pupilas. Raul ouvia música e, às vezes, de porre, pegava o violão e cantava, principalmente velhos boleros em espanhol. E cinema, os dois gostavam”.
(ABREU, Caio Fernando. Morangos Mofados. São Paulo: Brasiliense, 1986, p.126)
Fãs de cinema, como nos diz o trecho. Eis que estamos de volta ao famoso filme de Wyler. Em um determinado momento do conto, um deles, com sono, confessa ao outro que passou a madrugada acordado assistindo a um filme de que gostava muito.
“Até um dia em que Saul chegou atrasado e, respondendo a um vago que que houve, contou que tinha ficado até tarde assistindo a um velho filme na televisão. Por educação, ou cumprindo um ritual, ou apenas para que o outro não se sentisse mal chegando quase às onze, apressado, barba por fazer, Raul deteve os dedos sobre o teclado da máquina e perguntou: que filme? Infâmia, Saul contou baixo, Audrey Hepburn, Shirley MacLayne, um filme muito antigo, ninguém conhece. Raul olhou-o devagar, e mais atento, como ninguém conhece? eu conheço e gosto muito. Abalado, convidou Saul para um café e, no que restava daquela manhã muito fria de junho, o prédio feio mais que nunca parecendo uma prisão ou uma clínica psiquiátrica, falaram sem parar sobre o filme”.
(ABREU, Caio Fernando. Morangos Mofados. São Paulo: Brasiliense, 1986, p.126)
A partir daí, os dois principiam uma forte amizade e, talvez pela mediocridade de uma sociedade que limita as possibilidades de amor, sequer se dão conta de que estão se apaixonando um pelo outro. Mas as pistas estão dadas ao leitor no conto, e as almas cinzas e fofoqueiras que compartilham o mesmo local de trabalho de Raul e de Saul estão atentas ao “estranho” comportamento dos dois.
O fato é que Caio Fernando Abreu inspirou-se no filme de Wyler para contar a história desses dois jovens e citou, como uma pista para os leitores atentos e conhecedores de cinema, esse “filme que ninguém conhece”. A peça, a película e o conto estão nos lembrando que normas calcadas em preconceitos continuamente impedem, destroem e humilham.
Convidamos vocês a fazer o exercício de assistir à Infâmia – filme de Willian Wyler – e a ler o conto Aqueles Dois, de Caio Fernando Abreu, para conhecer mais de perto essa bela relação que se deu na História do Cinema e da Literatura entre uma peça, um filme e um conto.