A Importância Social da Narrativa

Em muitos setores da nossa sociedade – e inclusive fora de nosso país – circula a ideia de que vivemos em uma espécie de “democracia racial”. Segundo essa perspectiva, negros, brancos e índios viveriam em harmonia. No entanto, para que nossa opinião não fique apenas no senso comum, precisamos ouvir o maior número de vozes possíveis e é preferível que essas vozes não sejam somente de pessoas não negras. Quer dizer, pessoas brancas podem falar que vivemos em uma democracia racial, e muitas falam, mas, para pensarmos sobre essa questão, precisamos ouvir o que os demais grupos têm a dizer.

Será que os negros concordam com essa ideia de harmonia? Quando estudamos poemas, músicas, literatura, enfim, narrativas produzidas por pessoas negras, essa democracia racial é questionada.

Há um pensamento de uma escritora estadunidense que traz uma ideia muito interessante sobre a importância da narrativa e é esse o conceito de narrativa que pode ser o norteador para a nossa reflexão.

O grande poder da narrativa é expressar com muita intensidade os sentimentos das pessoas, e é isso que temos que escutar: a dor, o desespero, o medo e a humilhação do outro e deixar que isso nos transborde, nos perturbe.”

ARMSTRONG, Karen. Breve história do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

A literatura pode dar voz a identidades e narrativas negro-brasileiras, na maior parte das vezes, escamoteadas nas escolas, na televisão e no cinema. A literatura pode nos ajudar a perceber que muitas dessas vozes estão falando das mazelas que sofrem devido à desigualdade, ao preconceito, ao racismo silencioso.

Pode ser importante, especialmente na atualidade, levarmos em conta a seguinte perspectiva: O empoderamento e a liderança de uma causa, de uma luta que fale da situação indígena, por exemplo, só pode ser feito por índios – o que não quer dizer que quem não é índio não possa apoiar a causa, mas os não índios somente podem se conscientizar dessa luta bem particular a partir da voz, da narrativa do índio.

O empoderamento e a liderança de uma causa, de uma luta, que vai falar da situação do negro só pode ser feita por negros – o que não quer dizer que quem não é negro não possa apoiar a causa, mas só vai entender essa luta a partir da voz e da visão daquele que vivencia uma realidade que um branco não sente na própria pele.

E esse é o sentido político e social da narrativa. A narrativa nos ajuda a nos colocarmos no lugar do outro, a acessar uma realidade que pode, às vezes, ser distante da nossa. As narrativas podem nos sensibilizar e nos tornar mais éticos.

Democracia Racial

A ONU apresentou, em 2014, um relatório afirmando que, ao contrário do que a maior parte dos brasileiros gosta de pensar, existe sim racismo no Brasil. Segundo o relatório, parte da sociedade nega a existência desse tipo de preconceito, pois existiria por aqui o mito da democracia racial, e é justamente esse mito que torna difícil a discussão sobre o racismo, muitas vezes considerada polêmica e não bem-vinda.

O racismo só pode ser combatido se a sua existência for admitida!

A construção de um país pós-racial, de um Brasil em que nós não teríamos de nos preocupar com a cor da pele das pessoas, com a raça das pessoas e com o problema do racismo é uma meta que eu compartilho, mas infelizmente é ainda uma ficção.”

Joel Zito Araújo. Por uma estética da diversidade. 2015. (18 min.), P&B. Disponível em: . Data de acesso: 27/09/2019.

Desde 1984, Joel Zito se dedica a fazer filmes, a escrever textos e livros que buscam falar dos sonhos, das angústias, das fantasias e dos desejos da população afro-descendente. O que é ter origem negra no Brasil? O que significa ter, no conjunto de sua identidade, o fato de ser negro?

Uma pesquisa de Joel Zito, que virou filme e livro, chamada A Negação do Brasil, fala sobre a história do Negro na telenovela brasileira. Joel Zito e sua equipe passaram 5 anos pesquisando e examinando mais de 500 novelas que foram ao ar no período de 1962 a 1998. E eles perceberam que a televisão e a telenovela promovem uma espécie de estética do branqueamento. Em cerca de 90% das novelas, os negros apareciam como jagunços, serventes, bandidos, motoristas – representando situações de subalternidade em geral. Retrato de que não superamos um passado escravocrata. Os mocinhos e os galãs da televisão, por outro lado, são as pessoas que têm características mais europeias, germânicas, olhos claros e cabelos louros.

Alguns dados complementares:

► Apesar de mais da metade da população brasileira ser negra, os negros e negras têm menos acesso à saúde e à educação no país. E a maioria dos jovens assassinados nas periferias do Brasil é negra.

► O Brasil foi o país que mais teve escravos no mundo e foi, também, o país que mais demorou para abolir a escravidão.

► De acordo com o Cadastro Nacional de Adoção de Setembro de 2011, a maior parte das crianças que estão esperando ser adotadas são crianças negras. Somente 585 pessoas buscando adoção declararam que aceitariam crianças negras, enquanto 10 mil declararam abertamente que só aceitariam crianças brancas.

As Vozes Não Ouvidas da Literatura Brasileira

Quando estudamos literatura brasileira pelos livros didáticos e pelos manuais de literatura consagrados, o único poeta negro ou mulato que figura nessas listas é Cruz e Souza, aquele famoso poeta do simbolismo.

Cruz e Souza nasceu em Florianópolis e foi filho de escravos libertos, tendo sido, mais tarde, adotado por um marechal que o acolheu, lhe deu casa e um ensino de altíssima qualidade. O poeta, negro que nasceu no fim do século XIX, período de ideologia fortemente racista e excludente, teve muitos problemas de segregação social e consequente sofrimento. Esse sofrimento aparece em sua literatura, porém a poesia de Cruz e Souza não é uma poesia que fale do racismo, pois o poeta não assume sua negritude, pelo contrário, nega sua própria identidade – e podemos compreender o motivo, é claro, considerando toda a segregação que sofreu.

No entanto, uma série de outros poetas e escritores negros que fizeram poesia de combate, poesia que denunciava o racismo e que lembrava o passado escravocrata do país, não figuram nos principais livros de história da literatura. Talvez a resposta para essa lacuna esteja em um verso de um poema de Jamu Minka, outro poeta que não figura nesses livros.

O Brasil nega negro que não se nega.

MINKA, Jamu. Efeitos Colaterais. 2011.
Disponível em: https://lusoleituras.wordpress.com/2011/06/01/antologia-de-poesia-do-negro/. Data de acesso:15/03/2019.

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