Forma e Situação Enunciativa

Você já reparou como a estrutura de um texto pode ser comparada a um tecido? Quando compramos uma blusa, por exemplo, não pensamos na quantidade de linhas ou mesmo a forma como elas estão ligadas uma a outra, não é? Com texto é o mesmo! Quando lemos um texto em um jornal ou revista, não notamos todos os mecanismos (como as palavras, as frases, os períodos, os parágrafos) que estão ligando as partes para que possamos entendê-lo enquanto unidade.

Assim, todas as unidades da língua se unem para formar uma unidade maior de sentido, isto é, o texto. Na imagem a seguir, você poderá perceber como a língua se articula para conseguir alcançar esse efeito: parte dos sons para formar as palavras, que se organizam em frases.

Viu como cada parte do texto se liga com as outras para que a totalidade de sentido textual seja alcançada? Todas se implicam mutuamente! Principalmente a semântica, que implica simultaneamente em todas as outras partes. Portanto, o sentido começa a ser construído da menor unidade (micro) para formar o texto em si (macro).

No entanto, o que caberia perguntar aqui é se o texto é, então, apenas uma operação linguística em que os elementos fonéticos, mórficos e sintáticos se articulam e geram o sentido por si só?

A resposta é: Não! O sentido só é possível porque existe um mundo lá fora! Não esqueça que a língua é um sistema de representação do mundo e, portanto, com ele se relaciona diretamente no que diz respeito ao seu valor significativo. Achou complicado? Isso será melhor desenvolvido ao longo dos próximos capítulos, ok?

O que precisamos ter em mente agora é simplesmente que o texto não é apenas uma operação linguística em que elementos isolados são justapostos dentro de uma mesma estrutura. Esses elementos, para efetivamente formar um texto, relacionam-se semanticamente, isto é, tem sentidos que fazem parte de um mesmo campo semântico.

Sendo esse o cenário, voltamos a nossa primeira afirmativa: o texto não é apenas uma unidade linguística, mas sim, uma unidade comunicativa. Ele busca sempre comunicar alguma ideia ou opinião.

Entretanto, a depender de contextos e situações comunicativas específicas, um texto pode ter seu sentido modificado completamente. Como assim? Vamos ao exemplo!

Para Laura

Adeláide Ivánova

em 1998 quando encontraram
o corpo gay de matthew shepard
sua cara tinha sangue por todo lado
menos duas listras
perpendiculares
que era por onde suas lágrimas
haviam escorrido
naquele dia o ciclista
que o encontrou não
ligou para polícia logo que o viu
porque o corpo de matthew
estava tão deformado
que o ciclista achou ter visto
um espantalho

sábado passado em são paulo
a polícia matou laura
não sem antes
torturá-la laura
foi filmada ainda viva
por outro sujeito
que em vez de ajudá-la
postou no youtube o vídeo
d’uma laura desorientada
e quem não estaria
tendo sangue na boca e na parte
de trás do vestido
laura tem um corpo
e um nome que lhe pertencem
laura de vermont presente!
foi assassinada pela nossa indiferença
e pela polícia brasileira
tinha 18 anos
sábado passado.

Disponível em: http://ruidomanifesto.org/um-texto-inedito-e-quatro-poemas-de-adelaide-ivanova/ Data de acesso: 27/09/2019

Leu? Forte, né? Esse poema é de uma poeta contemporânea nossa: Adelaide Ivánova. Ela tem essa escrita potente, mas, antes de continuarmos, você sabe quem foi Laura de Vermont? Ela era uma mulher transexual que, como diz no poema, foi espancada até a morte pela polícia enquanto espectadores assistiam ao crime e depois ainda postaram o vídeo na internet. Diz tanto da nossa humanidade, né? Se você não conhece a história dela, pesquise! O caso dela desencadeou uma série de manifestações pelos direitos das pessoas transexuais.

Nesse sentido, perceba como esse texto se diferencia ao mesmo tempo que se aproxima dos outros. Não entendeu? Vamos lá! A temática de todos é muito similar. O primeiro exemplo de texto tinha a função de informar sobre os direitos adquiridos por pessoas trans (o uso do nome social para realizar matrícula). O segundo era uma campanha do estado do Rio de Janeiro, que tem como objetivo conscientizar a população em relação a necessidade de respeito ao uso do nome social. Já no poema, o objetivo é sensibilizar o leitor à realidade de muitas pessoas trans. Dessa forma, embora não exista um questionamento sobre o uso do nome social, esse se relaciona com os outros, uma vez que apresenta a dura realidade de grande parte da população trans, isto é, em formas diferentes tanto o assassinado quanto o desrespeito ao uso do nome social são formas de violência contra as pessoas trans. Entendeu? Assim, podemos dizer que todos os textos estão estabelecendo relações entre si, isto é, existem relações de intertextualidade entre todos os textos.

É importantíssimo notar que, embora tais relações sejam estabelecidas, cada texto foi escrito por um autor diferente, visando um público diferente e com um objetivo comunicacional diferente, ou seja, cada texto pertence a um contexto enunciativo específico e isso influência tanto na construção quanto na leitura e produção de um texto. Mas, na prática, o que isso significa? Significa que não lemos um poema como se fosse uma notícia de jornal ou uma campanha publicitária como se fosse um poema, não é? Isso tudo vai ficar mais claro quando formos falar em tipos e gêneros textuais, mas, por enquanto, nos basta perceber os diferentes contextos enunciativos em que os textos são produzidos, circulam e são lidos, beleza?

Assim, podemos concluir que:

O texto é uma unidade de sentido, a depender de um contexto/situação, que tem como objetivo comunicar uma ideia ou opinião a partir de uma forma específica.

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